Uma especulação a respeito da possibilidade de Francisco de Paula Cândido Xavier, o Chico Xavier, ter sido uma reencarnação brasileira de Allan Kardec, o codificador do Espiritismo, vem ganhando espaço na mídia brasileira. A matéria teria sido divulgada, inicialmente, pela televisão, em um programa de variedades, domi­nical, de abrangência nacional. Daí, a discussão migrou para outros veículos de comunicação, sendo que, em poucos dias, estava presente em jornais, revistas, emissoras de radio e outras de TV.

Dentro do movimento espírita a especulação virou polémica. Dividiram-se as opiniões, e, de lado a lado, esgrimiram-se argu­mentos contrários. Os jornais espiritas passaram a veicular pontos de vista; o assunto vem sendo trabalhado nos grupos de estudos doutrinários, e os caminhos da internet estão recheados de artigos, estudos, pesquisas sobre o assunto. Alguns, inclusive, arriscam teses em uma ou duas laudas, ora tentando demonstrar a probabilidade de Allan Kardec ter reencarnado em nosso País na pessoa de Chico Xavier, ora tentando demonstrar o contrário. De repente, a polêmica já esta beirando ao transbordamento para questões correlatas, versando acerca da metodologia de pesquisas reencarnatórias (o que, de certo modo, seria até um residual positivo desse debate).

Especulações dessa natureza já houveram sido levantadas, há décadas, quando se aventava a indagação sobre se Alziro Zarur, fundador da LBV, não teria sido a reencarnação brasileira do mestre de Lion. Felizmente, essa discussão não teve maiores repercussões, permanecendo apenas, e durante pouco tempo, em veículos de comunicação com inexpressiva circulação.

Na verdade, qualquer discussão a respeito da identificação de quem um determinado espírito teria sido em suas encarnações anteriores — ainda que se discutisse a legitimidade de tal interesse, ou a mera curiosidade —, é algo que escapa ao contexto da Doutrina dos Espíritos. Primeiro, porque o esquecimento do passado é um componente do processo reencarnatório, tão bem explicado e funda­mentado no Livro dos Espíritos. A propósito, com o advento das chamadas experiências de Terapia de Vidas Passadas (TVP), da qual seus próceres tentam, fragilmente, alçá-la ao nível de ciência, vem crescendo, mesmo entre os espíritas, um vivo desejo de desvendar o passado, em proporcional esquecimento, também, das mais básicas descrições doutrinarias. Não faria sentido, pois, segundo o Espiritismo, que o encarnado, diante dos desafios do momento presente — perante os quais ele deve ser "mais ele mesmo" —, especulasse, nas encarnações passadas, a solução da sua problemática existencial atual.

Depois, e principalmente, a Doutrina dos Espíritos não propõe que se faça culto à personalidade. Ao contrário, diz que todos os homens são iguais perante Deus, e que aqueles que são mais inteligentes, que alcançaram, por disciplina de sua vontade, talentos, devem sempre estar a serviço da construtividade social. Ou seja, o espirito, encarnado ou desencarnado, quanto mais evoluído, mais solidário, mais participativo, mais fraterno, mais humilde. Permanentemente, o chamamento posto pela mensagem espírita é no sentido de que todos dependem de todos.  Portanto, não há fundamento doutrinário para que, de repente, os espíritas se lancem a corroborar especulações com a intenção de que uma determinada pessoa tivesse mais luz que do que a sua própria.

É importante, para o Espiritismo, particularmente no Brasil, que Francisco Cândido Xavier tenha sido indicado ao Prêmio Nobel da Paz (1981). É importante que, em pesquisa promovida uma grande empresa de comunicações do Estado de Minas Gerais, Chico Xavier tenha sido considerado "O Mineiro do Século", com 704.030 votos, ficando à frente de personagens da nossa história nacional, como Alberto Santos Dumont, Juscelino Kubitschek, Ary Barroso, dentre outros mineiros ilustres. Isso é importante porque implica reconhecimento à significação de um homem e seu trabalho em benefício do próximo. Todavia, muito mais importante é a obra extraordinária deixada pelo médium, contando mais de 400 livros publicados — que muito contribuíram para a sustentação do movimento espírita no Brasil, e ainda contribuem, com indiscutível significado histórico —, suas obras de assistência social, seu trabalho de consolo ao sofrimento das pessoas que o procuravam, e, sobretudo, a exemplificação de um verdadeiro discípulo de Cristo.

Não é importante especular a trajetória reencarnatória de Chico Xavier, notadamente dentro de um evidente contexto de sensacionalismo publicitário.

Neste momento, expor sua figura, sua vida, sua obra, a estudo de caso, a estudo comparado, cujos critérios e metodologias são, no mínimo, discutíveis, em quadros comparativos, é extrapolar o âmbito da seriedade preconizada pela Doutrina dos Espíritos.

 

---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Editorial do Documentos SBEE Ano XIV Nº 26 dezembro 2 003